segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

E ELA FALOU!!!...






CONTO


E ELA FALOU!!!...

Avelina Maria Noronha de Almeida


Remexia em papéis antigos quando vi algumas anotações dispersas. Uma delas citava, como fonte, antigo livro da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Queluz, que, ali dizia, fora enviado para Mariana. Como as outras estavam próximas, penso que teriam a mesma procedência. A confirmação disso seria difícil, porque, segundo me informaram, não estaria em Mariana. Alguém já dissera estar em Ouro Preto.

Livro precioso, onde você se esconde? Guardado nalguma prateleira? Misturado a velhos alfarrábios, a antigos documentos? Consumido pelas traças, escurecido pelo mofo? Ou já fora sacrificado pelas chamas?
Além disso, alguém me falara que um músico mineiro, residindo na Itália, lá achara umas anotações que falavam de Queluz de Minas. Algo surpreendente... Assim, uma grande inquietação me invadiu, coisa que acontece sempre quando não consigo descobrir alguma coisa.

Os fatos, quais incômodos moscardos, rondavam minha mente.
De repente, incontrolável vontade de sair andando! Foi o que fiz e, quase inconscientemente, meus passos me levaram à Praça Barão de Queluz.

Sentando-me num banco próximo ao chafariz, perdi-me em divagações.Tarde quente. Sol quase a pino. Uma leve brisa soprava de vez em quando. À minha frente, branca, majestosa, recortando-se no céu azul, a Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Se ela falasse... muita coisa poderia esclarecer. Ah! Se ela falasse...

Essa idéia foi se repetindo teimosamente, diria mesmo hipnoticamente, até que um certo torpor me invadiu. Minha cabeça parecia flutuar. Em vão tentei sair da estranha situação. Foi quando ouvi, claramente, uma voz difícil de explicar. O único adjetivo que me vinha para classificá-la era ‘pétrea’. Uma voz pétrea... Eu mais a sentia do que ouvia. Não ressoava com força, porém era clara, plenamente audível.

- Mas eu falo... Eu falo... Quer me ouvir?

Nessa hora eu já despertara totalmente, com espanto e um grande susto. O primeiro ímpeto foi sair correndo. Contive-me e, apesar do inusitado, respondi, mais com o coração do que com a voz:

- Quero!

- E o que você deseja ouvir?

- Quero que você me fale de momentos importantes que viveu no passado, nos velhos tempos desta terra

- Ah! Sei muita coisa...

Pensei: quem sabe ela falará sobre o que me preocupa? Tomara!

E assim a igreja começou a falar:

- A primeira lembrança que me vem é de um mês de setembro. Eu estava inebriada com o perfume das jaboticabeiras branquinhas de flor. Havia uma quantidade enorme delas pelas redondezas. Era o dia 19 do ano de 1790. Desde cedo eu notei que havia uma movimentação diferente no arraial. Naquela época aqui era um lugarzinho pequeno, apenas uma rua comprida com umas duas dúzias de casas. Pelas beiradas, entretanto, havia muitos agrupamentos de casa, ranchos, fazendas, umas mais longe um pouco, outras até bem distantes. Nos dias de festa, isto aqui ficava apinhado de gente que vinha em carruagens, liteiras, carros de boi, até a pé. E naquele dia estava igual dia de festa. Numa certa hora, chegou correndo o sineiro. Subiu afobado as escadas e, quando chegou ao sino, quase punha o coração pela boca. Comentou com alguém que vinha atrás dele: “Vosmicê viu a instalação da vila? Nós agora somos Real Villa de Queluz! Que beleza quando o Senhor Governador chegou com aquela comitiva e entrou no prédio da Câmara. A cerimônia já acabou e agora vai ser levantado o pelourinho. Na hora em que soltarem o primeiro foguete é para começar a tocar os sinos.”

De repente, a força miliciana deu uma descarga de salvas de seus mosquetes. O sineiro começou a sua tarefa e meus sinos bimbalhavam com alegria. Muitos homens davam salvas de suas roqueiras, que eram armas usadas naquele tempo. E todos davam vivas: VIVA A RAINHA NOSSA SENHORA MARIA PRIMEIRA! Os sinos das capelas de Santo Antônio e de Nossa Senhora do Carmo também tocavam. Da minha parte mais alta, olhando para trás, olhei o tal de pelourinho. Ficava na Praça Nova, na metade do caminho entre o prédio da Câmara e as minhas costas, em frente onde é hoje a Prefeitura. Vi a coluna sobre quatro degraus de pedra, tendo quatro lados representando os quatro pontos cardeais. Em cima, um busto de capacete à cabeça, com um sabre enfiado no crânio. Muito bonito! Só não gostei dos argolões cuja finalidade era amarrar os escravos para surrá-los em público. E os meus sinos continuavam bimbalhando, repicando..

Nessa hora o sol se escondeu por detrás das nuvens e a igreja, antes banhada pelos raios dourados, assumiu um ar tristonho e iniciou outra narrativa:

- A lembrança agora é muito triste. Não gosto de lutas. Aconteceu em julho, 1842. Os liberais de Queluz lutavam contra o exército de legalistas. Foi muito triste! Se eu soubesse chorar, choraria, principalmente quando os legalistas se encontravam no meu adro e entre os rebeldes, gente que foi batizado na minha pia, que vem rezar diante dos meus altares, começaram a atirar em mim, encobertos pelos muros dos quintais e pelos arvoredos ou de algumas casas. Como doeu! Eu fui até ferida... Eu sei que as balas não eram para mim, mas, mesmo assim, sofri. E, quando tudo acabou, embora tenha sentido alívio, não consegui ficar alegre, porque morreu muita gente de ambos os lados.

Veio um silêncio pesado e pensei: agora acabou. Não vai me dizer mais nada. Engano. Ela recomeçou e bem entusiasmada:

- Graças a Deus vem na minha memória, para me aliviar um pouco, um episódio muito bonito. Na última metade do século XIX morava, ao meu lado, numa casa que ainda existe, um músico, o Loureiro. Ele e seus filhos tinham uma orquestra de violinos. Todas as manhãs eles vinham para a minha frente, para o Largo que tinha o meu nome: Largo da Matriz. Ali faziam uma apresentação. Eu ficava esperando com ansiedade que chegassem com sua música maravilhosa.

Uma bela manhã, ao virem para o concerto campal, notei que havia um homem diferente, com belos bigodes, acompanhado do José, filho do Loureiro, que estudava no Rio de Janeiro, e de outros músicos. Ouvindo a conversa entre dois senhores, fiquei sabendo que era um tal de Carlos Gomes, que havia composto uma peça musical chamada “O GUARANI”. Ele ia apresentá-la na Itália, porém, antes, resolvera fazer uma audição não oficial em Vila Rica, como se fosse um teste para verificar a reação das pessoas. Como pernoitara aqui com seus músicos, mudara os planos e, antes de partir para a capital da Província, realizou aqui, na nossa Queluz, aquela primeira apresentação pública de sua obra. Aí começou a orquestra a tocar. Eu nunca ouvira nada igual! Os sons vigorosos pareciam vibrar no arvoredo. Havia momentos em que a música se tornava doce como um regato, para depois estrondar como as águas volumosas de uma cachoeira. Realmente, eu

Outra pausa. Com certeza estava se deleitando com a lembrança. Mas daí a alguns minutos retomou a narrativa:

- Mas bem no final do século XIX, outro episódio me fez sofrer muito. Era o ano de 1899. Numa noite de tempestade... Que coisa terrível! Raios cortavam o céu alucinados. Trovões assustadores abalavam a escuridão da noite. As casas fechadas. Todos recolhidos ao seu leito. Ninguém percebeu quando, no momento de um trovão bem forte, audaciosos ladrões arrombaram a minha porta. Assim, ninguém me socorreu. Os barulhos do arrombamento se confundiram com o ribombar dos trovões. Os larápios levaram muitos objetos e utensílios de grande valor. Vários de prata... Só uma lâmpada de prata pesava quatro arrobas. E o pior... Violaram o sacrário! Atiraram ao chão partículas de hóstias. Por isso, eu fiquei interditada por sete anos... Não gosto nem de lembrar... Felizmente, em 1901, veio uma feliz novidade. Um político – não era daqui – Francisco de Paula Mayrink – prometera que, se ganhasse as eleições com a ajuda do povo desta cidade, daria todo o tabuado que fosse necessário para o meu assoalho, que estava em péssimas condições. Ele foi eleito. Cumpriu a promessa. A madeira era pinho de riga, o que há de mais belo em madeira, com aqueles desenhos que eram verdadeira obra de arte da natureza. As tábuas vieram do Rio de Janeiro, em dois vagões da Estrada de Ferro Central do Brasil. Mas o mais emocionante é que elas foram carregadas lá de baixo até aqui em procissão, uma verdadeira procissão de fé. Essa é uma lembrança que eu gosto de ter.

Mais uma vez aquela pausa para degustar a lembrança ou, talvez, descansar um pouco. Quem sabe estaria ficando cansada? Isso me preocupou um pouco. Teria emudecido de todo dessa vez? Foi com alívio e felicidade que ouvi de novo aquela voz pétrea:

- Olha, meu amigo, vou contar-lhe um último fato. Preciso parar com minhas recordações. Estou muito doente, precisando de tratamento. Fiquei um pouco cansada com os meus relatos... Mas quero terminar com um dos mais belos momentos que presenciei em minha vida. OITO DE MAIO DE MIL NOVECENTOS E QUARENTA E CINCO. O sineiro estava sentado no meu adro quando alguém chegou apressado e lhe disse que o Repórter Esso acabara de anunciar a notícia eletrizante: “A GUERRA ACABOU!!! A GUERRA ACABOU!!!” E a pessoa, ofegante, ordenou ao sineiro : “Corre, sineiro, vai tocar o sino! Toca bem bonito!” E o sineiro tocou. Repicava, repicava, transmitindo alegria, emoção, felicidade. Nunca tocara tão bonito! E logo outras vozes se juntaram à minha. As vozes de todos os sinos da cidade. As vozes das sirenes dos cinemas, que havia muito estavam mudas. A-s vozes das máquinas da Central do Brasil. As vozes dos carros, caminhões e ônibus. As vozes dos foguetes estrepitosos. E, principalmente, as vozes do povo que gritava, cantava, enquanto chorava de alegria. Até pessoas que se desconheciam se abraçavam... Nunca me esquecerei daquele dia! A emoção que senti, estou até sentindo agora. É uma felicidade que atravessou os tempos e me invade outra vez... Isto é bom! Está me trazendo forças para enfrentar as minhas adversidades. Agora tenho de ir. Adeus!

A voz ainda ecoou longe por uns minutos e desapareceu na distância. E, de repente, era como se eu tivesse acordado de um longo sono. O torpor foi desaparecendo. Senti de novo o calor do sol no meu corpo, a brisa suave que espalhava as flores de bouganville pelo chão.

Que teria acontecido comigo? Sofrera uma alucinação? Adormecera e sonhos me dominaram? Um desvario da imaginação? Que loucura!!!