quarta-feira, 27 de novembro de 2013

À MARGEM DO CAMINHO





À MARGEM DO CAMINHO

Avelina Maria Noronha de Almeida

Escrito em 1983

Após anos de andanças pelas terras do Ensino, resolvo sentar-me à beira da estrada e parar um pouco para pensar.

Meus companheiros de viagem prosseguem seu caminho.

Uns vão alegres, entusiasmados, fazendo planos; outros, curvados ao peso dos cansaços e das desilusões. Há os entediados, cuja preocupação única é chegar ao fim da estrada; os desorientados, porque perderam a direção exata de seus passos; os visionários – enfrentadores de moinhos; os revoltados, os agressivos, os limitados... Contemplo-os e sou, um pouco, cada um deles.

Estaremos no rumo certo ou, acaso, trilhamos um atalho duvidoso?

Sinto uma grande necessidade de meditar... de repensar conceitos, rememorar vivências, enxergar além dos rostos, livros, horários, lições e notas. Diante de mim desfilam hipóteses, perplexidades, indagações... Por que a sensação de fracasso, de insatisfação – mais leves nuns, mais fortes noutros – perturba a maioria dos professores brasileiros?

Antes de atravessar a fronteira, ao ser desterrado, Sarmiento escreveu na porta de um rancho: “As idéias não se matam.” Comentou alguém: “A primeira tempestade que vier apagará o escrito...” Ao que respondeu o grande estadista: “O que escrevi aqui não se apagará jamais.” Podemos dizer o mesmo do que ensinamos, das idéias que transmitimos?
Outro grande vulto da história sul-americana, Simón Bolívar, pesando a responsabilidade que a posição de líder lhe acarretava em relação ao Novo Continente assim se expressou: “Tenho em minhas mãos esta bela porção de terra, que não me pertence, que pertence à Humanidade. Que vou fazer dela? Qual será a sentença que seus futuros habitantes lançarão sobre mim?”

Nós, professores, temos em nossas mãos uma bela porção de gente. Deveríamos, bem frequentemente, fazer-nos perguntas análogas: estamos contribuindo para esclarecer, orientar e fazer felizes nossos alunos? Ou, ao contrário, confundimos, desorientamos, desajustamos e marcamos dolorosamente? Sairão eles de nossas mãos mais realizados, confiantes e capazes de enfrentar a vida? E quem irá cobrar mais severamente nossos erros e omissões? O futuro adulto, a sociedade ou a nossa própria consciência? Mas acontece que nem sempre conseguimos executar nossa tarefa como planejamos... Quais seriam os obstáculos interiores ou exteriores travando nossas intenções? Seremos os únicos responsáveis pelo fracasso do processo educacional? Precisamos situar, num contexto de causas e consequências dos resultados negativos, alunos pais, técnicos, legisladores, comunidade e, principalmente, nós mesmos, antes de tentarmos uma resposta à indagação: SOMOS NÓS OS CULPADOS PELO FRACASSO ESCOLAR?

Vem-me à lembrança uma frase de Sartre: “SOMOS VÍTIMAS E CÚMPLICES, COMO TODO MUNDO”.

* * *

Paulo Freire, certa vez, disse à repórter de um telejornal que o maior problema do Ensino Brasileiro era a separação entre professor e aluno. Apresentando a gravação da entrevista nas classes em que eu lecionava, fizemos um estudo sobre o assunto e, após debates e ampla pesquisa de campo, chegamos à conclusão de que realmente são, quase sempre, muito frágeis os laços que ligam mestres a discípulos.

A sala de aula é como se fosse um campo, tendo ao centro uma linha que divide funções, direitos e deveres. Em momentos de interesse, entusiasmo, amizade, deleite intelectual essa linha desaparece e todos se unem trabalhando com prazer, surgindo, então, o clima ideal para a verdadeira aprendizagem. Infelizmente, às vezes um muro se levanta sobre essa linha. As vozes se alteram, palavras são distorcidas ou, simplesmente, não ouvidas. Professores de um lado – alunos de outro, digladiam-se ou se ignoram. Direitos são reclamados; deveres, exigidos. Vem a separação, e a meta fica nebulosa. Não há mais sala de aula e, sim, barulhenta arena ou, o que pode até ser pior, uma arena silenciosa. QUEM LEVANTA ESSE MURO? O professor ou os alunos?

A verdade é que nos conjugamos na demeritória operação. O professor coloca suas pedras quando, por cansaço, negligência ou falta de preparo não consegue levar à aula a incentivação indispensável; ou permite que problemas particulares lhe prejudiquem a atuação; ou deprecia, ironiza, agride, avalia sem os devidos critérios, não compreende, não é criativo, não estimula nem é amigo, não promove o crescimento interior do educando.

Triste obreiro, porque prejudica a si próprio, é o aluno indisciplinado, desatento, displicente, desonesto (oh! as terríveis colas...), dissimulado e insensível.

Também colocam pedras os pais quando são incompreensíveis, omissos, preocupando-se com a situação escolar do filho apenas ao “estourar a bomba” e, racionalizando sua incúria com recriminações injustas ao professor, criam ou reforçam no espírito da criança ou do jovem idéias negativas a respeito do magistério.

Todas as pessoas envolvidas na complexa organização educacional que, em funções diversas, agem de maneira errada ou incoerente, são nossos “auxiliares” na inglória construção do fracasso.

QUAL A MELHOR MANEIRA DE DESTRUIR ESSES MUROS? Fazendo da Educação uma obra comunitária no centro da qual estão professor e alunos em perfeita sintonia. Se maestros e músicos não se afinam, que será da execução da orquestra?

* * *

Formiguinhas carregavam pesado inseto, parede a cima. Havia momentos em que paravam, marcavam passo penosamente, retrocediam um pouquinho e eu pensava: “Agora elas se desequilibram e o inseto cai...” Mas não: logo, logo, recomeçavam a subida. Em meia hora, alcançaram a beirada superior da janela, atravessaram-na e sumiram em direção do telhado. Uma coisa me chamou a atenção: durante todo o tempo, outras formiguinhas subiam e desciam formando o caminho e algumas, ao passarem pelas carregadoras, aproximavam-se e pareciam tocá-las e, depois, iam-se embora. Uma coisa eu garanto: em todo o percurso observado por mim, nenhuma daquelas que transportavam o fardo foi substituída. Era como se as outras lhes transmitissem uma energia especial ou, em misteriosa linguagem, as estimulassem mais ou menos assim: “Dediquem-se à sua tarefa. Ânimo, estamos aqui para apoiá-las e ajudá-las se for necessário.”

Podemos comparar os professores a essas formiguinhas carregadoras. Eles também não podem ser substituídos na missão de ensinar. Podem e devem ser apoiados, estimulados, ajudados, mas cabe-lhes exclusivamente a direção, a responsabilidade e a execução efetiva das atividades pedagógicas. Porém isso nem sempre acontece hoje em dia.

Excesso de trabalho, tensão, insegurança, consumismo, transição de costumes, uma série de fatores enfraqueceu a capacidade da família de orientar e fazer-se respeitar. A criança geralmente vai para a escola desprovida de atitudes benéficas para as interações sociais mais amplas e despreparada para uma vida de maiores responsabilidades, o que obriga os professores a realizarem verdadeira ginástica mental para conseguir ambiente propício à boa aprendizagem. Ficando sobrecarregados, então, o que fazem muitos, talvez a maioria deles? Dão o “troco” exigindo “deveres extra-classe” excessivos e complicados, obrigando os pais, tenham ou não competência, a suprir, por seu turno, as conseqüentes deficiências do ensino na sala de aula.

É preciso acabar com essa situação viciosa em relação às funções desempenhadas por pais e mestres, essa diluição de responsabilidades. Deve a família reconquistar a força e a autoridade perdidas para que o professor tenha condições de desenvolver tranquilamente o processo pedagógico para o qual se instruiu e que obedece a normas e metodologia estabelecidas graças ao esforço, estudo e experiências de muitas pessoas, através dos tempos. A intervenção indevida de pessoas não preparadas pedagogicamente, mesmo que bem intencionadas, em vez de ajudar, pode acarretar interferências e condicionamentos negativos. O ideal não é a escola desempenhar o papel do lar, nem os pais substituírem os professores, mas, ajudando-se mutuamente, cada um desempenhar melhor sua própria função.

* * *

Os gregos amavam profundamente a liberdade. Perdendo a independência e impotentes para sacudir o jugo estrangeiro, racionalizaram suas frustrações com o apego a filosofias que consolavam ou embaçavam a realidade humilhante; os epicuristas, mergulhando nos prazeres; os cínicos, rejeitando normas e desligando-se dos bens materiais; os estóicos, glorificando a face desfibrada e fria da resignação sem luta. Depois de ter alcançado o topo da montanha com Sócrates, Platão e Aristóteles, o pensamento helênico era atingido pela decadência, já prevista por Platão ao dizer que Atenas, representante máximo do esplendor grego, foi perdendo seu valor quando “a encheram de portos e docas, de muros e de tributos, em vez de a encherem de retidão e esperança”.

Oprimidos pelo Materialismo, repetimos esse panorama filosófico nos tempos atuais, o que provoca inevitáveis reflexos na educação.

Epicuristas são os alunos obcecados por diversões, sem tempo para o estudo sério; os pais absorvidos pelas festas e compromissos sociais, sem disponibilidade para acompanhar o desempenho escolar dos filhos; uns e outros mais preocupados com as cotações do “mercado de trabalho” para a escolha de um curso que leve a profissão rendosa que possibilite mais lucro e prazeres do que com a realização profissional; e, finalmente, aqueles professores que são mercenários, sem ideal. Todos eles preocupados em assegurar uma vida de acordo com o seu comodismo.

Os modernos cínicos estão entre os que, em nome de uma falsa liberdade, negam a autenticidade de certos valores; no fundo, porém, procuram desculpa para fugir de responsabilidades. Os estóicos se acomodam. “Para que estudar? Não aprendo mesmo...” “Não adianta fazer nada, meu filho não dá para estudo...” “Já deixei de lado aquela classe. Ninguém lá quer se esforçar...”

Felizmente, distantes de um cenário desses, existem muitos professores “carismáticos”, que estão sempre caminhando com redobrada energia e conseguem resultados positivos. Alguns professores mais frágeis, entretanto, vitimados pelo desânimo, desistem ou se encaixam num sistema de rotina.

Disse-me uma aluna: “GOSTARIA DE QUE A ESCOLA ME ENSINASSE A VIVER EM PAZ E A SER FELIZ”. Essa frase me impressionou muito. Fez-me pensar seriamente no seu significado.

Vou prosseguir minha viagem a fim de amadurecer na realidade tantas reflexões e já levando a certeza de que só poderá sentir-se realizado aquele professor que souber captar as expectativas dos alunos, tiver ideal e amor.

Como seria bom que, no final do caminho, cada professor pudesse ouvir, de seus alunos, o que foi dito sobre um professor americano: “ELE TOCOU VÁRIAS VIDAS E CADA UMA DELAS SE TORNOU MELHOR POR CAUSA DELE”.

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