sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

FOLCLORE DA QUARESMA E DA SEMANA SANTA



















FOLCLORE SOBRE QUARESMA E SEMANA SANTA NA ANTIGA QUELUZ


Avelina Maria Noronha de Almeida



Sexta-Feira da Paixão. Eu era menina bem pequena. Peguei a vassourinha que me deram e fui varrer o jardim. Pra quê!...

- Menina, pára de varrer!!! – era a voz aflita da moça que tomava conta de mim.

E explicou muito brava:

- Você está varrendo Nosso Senhor Jesus Cristo!

Larguei a vassoura, peguei um martelinho e fui quebrar os coquinhos que meu bisavô me trouxera. Novo desespero da moça:

- Larga isso! Você está martelando Nosso Senhor...

Até porque fui pentear cabelo ela implicou. Desisti. Sentei-me no degrau da varanda e fiquei imóvel, com medo até de me mexer e magoar o nosso Salvador.

Era assim em tempos passados. Quem vendesse alguma coisa na Sexta-Feira da Paixão, estava vendendo Nosso Senhor Jesus Cristo; se moesse milho, em vez de sair fubá podia sair sangue. Não se devia dar roupas, porque podiam fazer feitiço com elas. O leite deveria ser distribuído gratuitamente, senão a vaca deixaria de produzi-lo.

Eram várias, também, as superstições relacionadas com a Quaresma: quem dançasse, cantasse música de carnaval, fizesse festa corria o risco de ver ou virar mula-sem-cabeça ou lobisomem. Casar na Quaresma, nem pensar!

Simpatias, muitas, como, para curar coqueluche: Na Sexta-Feira da Paixão enterrar 3 pedrinhas de sal, ou pedir 3 pratinhas pelo amor de Deus e enterrá-las como se fosse a tosse. Para quebradura, naquela mesma data, colocar o pé da pessoa numa gameleira, tirar a marca na casca, cortá-la e pendurar na fumaça para secar; medir um prego na hérnia e depois enterrar até a marca no pé da gameleira.

Também na noite da morte de Cristo: cortar as unhas das mãos e dos pés cruzando (primeiro uma unha da mão direita, depois uma da mão esquerda e, assim, ir alternando) não deixava dar dor de dente; cortar o cabelo em cruz e enterrar na bananeira fazia o cabelo crescer muito; cortar um pedacinho da orelha dos animais domésticos fazia com que eles nunca se zangassem; a pessoa que fosse gorda devia vender quantos quilos quisesse emagrecer para quem quisesse engordar e depois passar o dinheiro para o primeiro pobre que encontrasse na rua; dar três piques no tronco de qualquer árvore frutífera faria com que ela produzisse em abundância; comer o ovo que tivesse sido botado naquele dia daria proteção...

Mas, por favor!!! Entendam bem. Eu não estou aqui ensinando simpatias... e sim passando o resultado de pesquisas folclóricas.

Francisco de Paula Rezende, que foi juiz de direito em Queluz nos meados do século XIX, conta, em seu livro “Minhas Recordações”, que, em nossa terra, encontrou alguns costumes interessantes relacionados com a Quaresma e as festas de Semana Santa. Um deles era a Serração da Velha, que ele assim descreve, embora ressaltando que nem sempre a memória ajudasse. Ele diz o seguinte sobre essa folia:

“.De três coisas, entretanto, me recordo: a velha é a quaresma que eles tratam de serrar; pois que esse brinquedo tem lugar justamente no meio exato da quaresma; segundo que a velha faz um testamento exatamente como o de Judas em que se trata de satirizar os costumes ou antes algumas pessoas; e terceiro finalmente que este brinquedo terminava por uma paródia mais ou menos perfeita de um enterro ou antes de um ofício solene de defunto, pois que, reunidos todos defronte da minha casa, no largo da Matriz, com estandartes, luzes, e muitos deles vestidos de padres, aí se conservavam um tempo imenso a cantarem lições e a praticarem algumas outras solenidades que são próprias daqueles ofícios.”

O relato que ele faz é muito sucinto, mas naturalmente o ritual devia ser como o que geralmente se usava na região. A Serração da Velha consistia em ritos festivos oriundos das folias portuguesas e que aconteciam na quarta-feira da terceira semana da Quaresma no Brasil, no séculos XVIII, e desapareceram mais ou menos nos anos 70 do século XIX. Era uma crítica ferina à figura das avós pela forma violenta que comumente usavam naquela época nos métodos de disciplinar as netas. No Rio de Janeiro, de acordo com as crônicas coloniais, as mulheres idosas ficavam quietinhas, escondidas em suas alcovas, não saindo às ruas enquanto não passavam os préstitos. Creio que aqui não se chegava e esses extremos. Algumas fontes citam os seguintes rituais:

Em cima de um estrado há uma pipote onde dizem estar encerrada uma velha condenada ao suplício do serrote. Um homem com um serrote finge estar serrando o pipote. Enquanto isso, o povo canta:

Serra a velha, / Força no serrote. / Serra a velha / Dentro do pipote..
Esta velha tem malícia, / Esta velha vai morrer. / Venha ver serrar a velha, / Minha gente, venha ver.

Serra, serra, serra a velha, / Puxa a serra, serrador, / Que esta velha deu na neta / Por lhe ouvir falar de amor.

Aí o serrador cantava com voz de falsete:

Que castigo ela merece? / Dizei-me senhores meus.

E a turba alvorotada repetia o canto inicial:

Serra a velha,/ Força no serrote./ Serra velha / Dentro do pipote.

Alguns autores acreditam que essa folia ainda é celebrada de forma cristianizada na “queima do Judas” e no “testamento do Judas”.

Padre José Duarte de Souza, num livro inédito em que apresenta subsídios de pesquisas feitas em diversas fontes com vista a uma futura história de nossa cidade (sonho que ele, infelizmente, não teve tempo de realizar), focalizando as diversões populares em Queluz, no caso a “serração da velha”, diz que algumas mulheres “revoltadas e indignadas, xingavam e, às vezes, recorriam ao Juiz de Direito para proibir tal diversão. Durante o percurso pelas ruas ao clarão de tochas e lanternas, o povo cantava estes versos:

Olha a velha de lá, / Abra a boca de cá, / Põe a mão na espada, / Vamos guerrear.
Quando ver (sic) a velha / Com cara de que chorou / A cachaça na venda / Já se acabou.
Quando ver ( sic) a velha / Na porta sorrindo, A cachaça na venda, / Já está se medindo.

Ao chegar ao Largo da Matriz, hoje praça Barão de Queluz, lia-se o testamento da velha, cujo alvo era satirizar os costumes e pessoas do lugar. Terminava por uma paródia mais ou menos perfeita de um enterro com estandarte, música e alguns vestidos de padre para a celebração solene das exéquias”.

Outro brinquedo utilizado na Quaresma chamava-se “Luiz ou Liz Teixeira”. Ia um homem carregado em uma padiola ou em um espécie de andor, acompanhado pelo povo em algazarra, o qual ia serrando uma grande cabaça, fazendo trejeitos e momices, despertando gritos de alegria dos acompanhantes que ia cantando pelas ruas e praças versos sobre a cachaça.

A cachaça boa / É de garrafão, / Bebe o afilhado, / Bebe o patrão.
A cachaça boa / É da garrafinha, Bebe a afilhada, / Bebe a madrinha.
A cachaça é boa, / Eu daqui não saio. / Aqui mesmo eu bebo, / Aqui mesmo eu caio.

O homem, que eles chamavam de Luiz Teixeira, em cada parada fazia um discurso sobre a cachaça.

No século XX, além da queimação do Judas – um boneco vestido de pano pendurado, que era malhado, estripado e queimado no Sábado de Aleluia, em Queluz, depois Conselheiro Lafaiete, o folclore quase se resumiu nos testamentos de Judas, muito engraçados! Às vezes, na primeira metade do século, eram excessivamente maldosos, despertando indignação em pessoas satirizadas. Mas nem sempre isso acontecia, muitos até gostavam de serem lembrados quando as brincadeiras eram leves. De todo jeito, os textos eram feitos com muita graça.

Encontra-se, no Correio da Semana de 6 de abril de 1940, sob o título ALELUIA! ALELUIA!!!, o seguinte:

“Encerrando a Semana Santa, é de praxe marcarem o Sábado de Aleluia com o trucidamento de Judas. A nossa cidade, embora todo o seu adiantamento, não fugiu ao velho hábito. Felizmente, ele modernizou-se. Já não fazem a Quinta do Judas, para a qual, na madrugada do Sábado de Aleluia, os gaiatos carrregavam tudo que encontravam à mão, inclusive veículos, animais, utensílios domésticos, até plantações completas.”

Mas se a brincadeira acabou, deixou de ser feita, nem por isso passou a expressão que muitas vezes se ouve falar (eu mesmo costumo usar a expressão) “Vou levar pra a horta do Judas”. Pelo jornal, comprova-se a sua existência em nossa cidade. Continua o jornal, esse excelente testemunho da História:

“Ao romper das Aleluias, lido o Testamento, Judas, com seus trinta dinheiros nefandos, era entregue à sanha da meninada. Hoje, em nossa cidade, Judas é ‘passeado’ pelas ruas da cidade, lido o seu testamento de ponto em ponto, e ‘estourado’ finalmente. Este ano assim se deu. A dupla “Angorás” fez o seu Judas e o competente testamento, que foi impresso e fartamente distribuído na cidade, do qual vão abaixo os legados mais interessantes. O Judas da Chapada também teve seu testamento que sai abaixo, a insistentes pedidos de moradores daquele populoso e florescente bairro.”

Alguns trechos do Testamento da Chapada:

Sou o Judas da Chapada, / Morro da Mina e Água Preta, / Sou irmão de todos vós / E também do Capeta.

Para o grande Zé Duarte / Amolar suas navalhas, / Deixo uma lima velha / E um fardo de toalhas (Zé Duarte era um barbeiro antigo da Chapada).

Uma viola, uma sanfona / E também um violão, / Deixo pra ser empenhado / No botequim do alemão.

Ao amigo Zé Álvaro, / Que é um moço granfino, / Deixo-lhe a ciência, / De afinar seu violino.

Depois de brincar bastante, concluía:

Finalmente, dou nó à corda, / No momento da tortura, / E lego a minha egüinha / Ao violeiro Ventura.

Agora uns trechos do “Testamento de Judas Iscariotes” (organizado pela dupla Angorá) em 1940 e distribuído ao povo:

Antes de ir pro outro mundo / Quero no micro falar; / Por isso peço ao Seu Louro / A Rádio Clube ligar.

Ao conhecido Braz / Eu deixarei coisas mil. / Poderá fazer escolha / Para o seu
Salão Brasil.

O meu belo frontispício / Dará um lindo ladrilho, / Por isso já fiz oferta / Ao Joaquim de Souza Filho..

Dimas, o fogueteiro, / Que me fez de bomba e capim, / Virá com sua morena / Pôr-me fogo no estopim.

A corda já me aperta! / Minha boca está espumosa! / Dai-me água, Dr. Mário, /
Lá da Fonte Luminosa!...

Senhores!... adeus!... / Só para o ano... / O nó já me aperta, / Já não sou um ser humano!...

Duas curiosidades: a primeira é que, antigamente, as pessoas que vinham da roça e não tinham casa na cidade, ao passar num córrego que havia logo após a descida íngreme da Rua Francisco Lobo, ali lavavam os pés, por isso o local passou a ser chamado de Lava-Pés; a segunda: para cada procissão, as senhoras e moças faziam um vestido novo. Minha mãe, nessa época, era costureira e passava mal para dar conta.

Hoje as superstições esmaeceram na distância do tempo (embora aqui e ali ainda haja resquícios), porém, em seu lugar, encontramos outras atitudes que, graças a Deus, não estão em todas as pessoas: a descrença, a indiferença, o desrespeito.
Não podemos negar que havia um encanto especial nos tempos de outrora!

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