domingo, 15 de dezembro de 2013

O TICO-TICO




















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O TICO-TICO

Avelina Maria Noronha de Almeida



Uma coisa maravilhosa dos tempos antigos foi a revista O TICO-TICO. Esse nome não deve significar nada para quem é dos últimos tempos, mas para quem foi criança na primeira metade do século XX e até princípios da década de 60 recorda-se dele com saudade. Desde que deixou de ser publicada,nunca mais houve algo no gênero que superasse essa revista, nem mesmo que a alcançasse.

Na época em que eu era criança, os pais compravam na banca do Zé Lírio, no prédio do Hotel Meridional, três tipos de revistas infantis: o Billiken, revista publicada na Argentina, escrita em espanhol,mas esse idioma estrangeiro a gente “tirava de letra”; “Era uma vez...”, do Vovô Felício;e a rainha de todas: O TICO-TICO.

E não eram só as crianças que ficavamdeslumbradas. Também adultos. Dizem que era leitura prazerosa de Rui Barbosa e Coelho Neto e que jovens daquela época como Gilberto Freyre, Érico Veríssimo, Carlos Drummond de Andrade,Ledo Ivo, Lygia Fagundes Telles, Ana Maria Machado e outros eram leitores fascinados com a revista. Inclusive Carlos Drummond, em carta a Álvaro de Moya, disse que, no ano de 1910, o Tico-Tico o ajudou a aprender a ler e a ver figuras. Vejam o que ele escreveu:

"Um passarinho “O Tico-Tico” é o pai e avô de muita gente importante. Se alguns alcançaram importância, mas fizeram bobagens, o Tico-Tico não teve culpa. O Dr. Sabe-Tudo e o Vovô ensinaram sempre a maneira correta de viver, de sentar-se à mesa e de servir à pátria. E, da remota infância, esse passarinho gentil voaaté nós trazendo no bico o melhor do que fomos um dia. Obrigado,amigo!Carlos Drummond de Andrade."

Nas palavras do grande filho de Itabira, podemos avaliar a importância de “O Tico-Tico”, primeira revista infantil do Brasil, lançada no dia 11 de outubro de 1905. Era obra do jornalista Luís Bartolomeu de Souza e Silva. Lygia Fagundes Telles, nos 100 anos da criação da revista, disse que “a criança está perdendo a infância,a infância que eu tive lendo o meu Tico-Tico, Almanaque d’O Tico-Tico”.

De acordo com o jornalista Sérgio Augusto, essa revista fezmais pela educação do Brasil do que todos os ministros que disso seencarregaram nos últimos cem anos. Mas o que é esse tão especial O Tico-Tico, que tanto colaborou na formação de várias gerações de crianças, jovens e ainda atingiu adultos? A fabulosa revista teve como modelo a revista francesa La Semaine de Suzette, uma personagem que, no Brasil, tomou o nome de Felismina. Quatro páginas eram coloridas,sendo as demais com impressão monocromática em tom de vermelho, azul ou verde, em vez de preto. Custava 200 réis. Imaginem que esse preço permaneceu até a década de 20 do século passado,porque naquela época não havia inflação no Brasil. Em seis décadas foi fonte de educação e divertimento de várias gerações de brasileiros. Conta-se que um dia pediram a Rui Barbosa para explicar uma informação que dera. E o Águia de Haia respondeu:

“ - Ora, tirei d’O Tico-Tico”.

O conteúdo da revista era de muita variedade. Havia essencialmente uma intenção didática, mas apresentada de um modo muito natural, habilmente inserida nos contos, nas brincadeiras, enfim em todo o conteúdo da revista. A criançada, seduzida pela diversões apresentadas, tinha acesso a uma aprendizagem prazerosa e, por isso mesmo, eficiente.

Eram focalizados vários aspectos da vida social, pois os editores achavam que isso era importante para o desenvolvimento das crianças. A literatura era um dos campos apresentados, com histórias, poesias... Havia informações diversas, jogos, partituras e letras de músicas, textos teatrais e folhas para serem recortadas e armadas, um grande espaço para quadrinhos e seção de correspondência, com consultas, trocas de experiências, como se pode ver, bem no estilo moderno. Também eram muito apreciados os passatempos com enigmas, adivinhações e jogos. Sem se entendiarem, os pequenos leitores assimilavam conhecimentos e preceitos morais.

Rejane M.M.A. Magalhães conta que Rui Barbosa todas as semanas comprava O Tico-Tico para os netos, mas era o primeiro a ler a revista. Certo dia, um seu amigo, o Desembargador Palma, encontrou-o imerso na leitura da revista infantil. Estranhou aquilo e gracejou:

"-Você virou criança?"

E Ruy, com muita seriedade, respondeu:

“- O espírito tem necessidade de distrações amenas, e nada melhor para conservá-lo jovem do que as leituras infantis.”

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Tenho em minhas mãos um exemplar do Tico-Tico (velhinho,coitado!), castigado por mais de 61 anos de vida sofrendo mudanças,porões empoeirados, mas, mesmo assim, ele ainda dá o seu recado. Apenas uma ligeira visão do seu conteúdo descrevendo algumas páginas...

Como era no mês de setembro, a capa ostenta uma cena do “Independência ou Morte!”. A página 3 traz as LIÇÕES DE VOVÔ, como sempre muito sábias, escritas em linguagem bem clara. Fala da tarde de 7 de Setembro e de D. Pedro. Nas páginas 4 e 5, vem a história “A Última Travessura”, uma narração interessante, demonstração de sensibilidade, com um fundo moral e sugestivas ilustrações de Luiz Sá, muito coloridas e divertidas.

A página seguinte: “Curiosidades”, alterna ilustrações e informações curtas, muito bem distribuídas, de forma nem um pouquinho monótona, como uma caricatura do sol bem engraçada, seu rosto apoiado em umas nuvens, e os dizeres:

“O Sol está a cerca de 150 milhões de quilômetros da Terra” (um dado que é o mesmo conhecido hoje); um desenho bonitinho de formiguinhas e abaixo: Proporcionalmente a formiga é um dos animais que maior cérebro possui; e assim por diante. A seção da página 11 é “No Mundo dos Conhecimentos”. O texto circundado de ilustrações e, no exemplar citado o assunto é flores, dizendo, entre outras coisas, que a palavra vem do latim “flos”, dando informações históricas interessantes como: “Os antigos consagravam a seus deuses e a seus heróis diferentes flores, cada uma das quais exprimia um sentimento ou um atributo”. Ou então: “Na antiga Roma houve festas chamadas‘Florálias’, celebradas em 28 de Abril em honra à deusa Flora. Enfeitavam-se todas as casas e mesas, todos se coroavam com flores ecantavam pela rua”.

Na página seguinte inicia-se uma série: GRANDES BATALHAS DA NOSSA HISTÓRIA, com a reprodução marrom ocupando quase toda a página e, ao lado, uma coluna com as informações sobre a batalha marítima no tempo da invasão holandesa, no ano de 1631, quando os invasores receberam um grande reforço: uma poderosa esquadra sob o comando do almirante Janson Pater. Quem estava no comando da esquadra brasileira era o almirante espanhol D. Antônio Oquendo. “As duas esquadras encontraram-se nas costas da Bahia, no dia 15 de setembro e travou-se, então, uma terrível batalha naval, a primeira de grandes proporções que se teria nas costas do Brasil. Foi nessa batalha que Janser Pater, vendo-se perdido, enrolou-se na bandeira de sua pátria e atirou-se ao mar, exclamando:'O oceano é o único túmulo digno de um almirante batavo’”.

Nas páginas 22 e 23, com grandes, engraçadas e bem feitas ilustrações de Oswaldo Storni, um conto adaptado por Maria Adelaide, que vou procurar resumir: A “Cruz do Prefeito”. Havia num povoado um prefeito muito honesto, compenetrado em seus deveres, mas que não sabia escrever e, por isso “assinava de cruz” os atos oficiais, portarias, decretos, recibos, qualquer documento da Prefeitura. Um dia foi nomeado um novo secretário, homem inescrupuloso, que achou ser bem fácil falsificar aquela assinatura e colocar a mão nos cofres públicos, ficando a responsabilidade para o senhor prefeito. Assim o fez. Um dia alguém achou absurdas as despesas autorizadas, levou ao juiz, eos papéis vieram à mão do prefeito para que ele justificasse aquelas ordens. Estranharam que o prefeito se mostrasse tranquilo e apenas separasse de um lado papéis que dizia serem falsos e do outro os verdadeiros.

- Mas como - perguntaram-lhe - pode provar isso?

Respondeu o prefeito:

- São parecidas, porque o falsificador teve muito cuidado em imitar a minha assinatura. Quando eu assino, enfio o papel entre os meus dedos indicador e médio, e traço a linha vertical da cruz junto à extremidade da unha do indicador. Deste modo, os meus traços ficam sempre à mesma distância da extremidade da margem esquerda da folha.

A seguir, mostrou que, nas folhas falsificadas pelo secretário, as linhas verticais das cruzes não coincidiam, pois umas estavam mais para a direita e outras para a esquerda, sendo que, nos papéis legítimos, a distância era uniforme. A autora da adaptação conclui: O secretário, interrogado severamente, confessou tudo. Denunciou os cúmplices, os negócios foram desfeitos, e o prefeito continuou a gozar de todo o prestígio, levando adiante sua ótima administração.

Para se aquilatar o valor dos textos do Tico-Tico, vejam só o seguinte: Nas páginas 24 e 25 está uma seção permanente “Conversas do Tio Juca”. E imaginem quem é o Tio Juca? Nada mais nada menos que o famoso Josué Montello, considerado pela crítica um dos maiores narradores brasileiros, com mais de cem obras publicadas, agraciado com medalhas e condecorações em vários países, tendo romances traduzidos para o inglês, o francês, o castelhano e o sueco e novelas transpostas para o cinema.

Neste exemplar, Tio Juca está no quarto texto sobre o Poder Judiciário. Com linguagem clara, elegante, conversa com os sobrinhos Zequinha, Nhozinho e Teté sobre o Poder Judiciário e o faz relacionando seus ensinamentos com fatos acontecidos com as crianças e comparando os cargos jurídicos com ele próprio e os sobrinhos.

Um exemplo: depois de ter explicado minuciosamente as atribuições de cada membro do judiciário e mostrado atuações, a menina Teté questionou Tio Juca na função de juiz quando proibiu o Zequinha de ir ao cinema por não ter feito os deveres de casa:

“- Tio Juca, me diga uma coisa. Como foi que o senhor deixou que o Nhozinho, no domingo, fosse ao cinema, se ele também não fez os deveres que a professora passou?”

Tio Juca não ficou embaraçado:

“- Foi porque Teté, que era o advogado de Nhozinho, conseguiu provar que ele só não fez os deveres porque esteve de cama, com um pouco de resfriado. Não foi isso, Teté?”

“- Foi isso mesmo, tio Juca.”

Tio Juca tornou a voltar-se para Zequinha:

“- E você, Zequinha, não fez os seus deveres porque foi jogar peteca na rua, não foi isso?”

Zequinha respondeu, baixando a cabeça:

“- Foi sim, senhor.”

“- O castigo não foi merecido?”- perguntou o velho.

“- Foi” - disse Zequinha.

E por aí vai a revista, com a sua “Gavetinha do Saber”, onde em pílulas, joga informações de diversas áreas do conhecimento, algumas com ilustrações, sempre procurando passar uma mensagem positiva como esta: “Miguel Couto foi um dos maiores médicos brasileiros, mestre de várias gerações. Era de origem pobre e se fez pelo estudo e pelo esforço, pelocaráter e força de vontade.”

Ou apresentando fatos interessantes: entre os astecas, os antigos povoadores do México, todo aquele que possuía um pedaço de terra era obrigado a cultivá-lo. Se dentro de 2 anos não a aproveitassem, recebia um aviso e, no fim do terceiro ano perdia o direito de posse do terreno.



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Nos caminhos da revista desfilam Pafúncio, Marocas, Reco-Reco, Bolão, Azeitona, Lamparina, Chiquinho, Jagunço, Lili... personagens de grande empatia, todos muito amados por crianças e adultos, e cujos traços deixaram marcas na história da literatura infantil. Pena que nunca mais ninguém tenha tido coragem, ou interesse, de editar uma revista infantil de tanto valor como entretenimento, instrução, valor moral e cívico.

Tenham certeza de que o Tico-Tico foi poderoso fator na mente de seus leitores.
Disse a jornalista Miriam Leitão, com livros publicados e várias premiações, entre as quais o Ayrton Senna de Jornalismo Econômico, de 2004, o que valida suas palavras:

“Precisamos capturar os estudantes para o prazer da leitura. Prazer que meus pais e professores me ensinaram na infância e ao qual tributo cada um dos meus êxitos. Quem não lê não pensa bem. Quem não é ensinado a pensar jamais vai realizar o seu potencial.”

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